sexta-feira, 20 de julho de 2012

Cultura e Futuro: é de política que falamos

A sessão pública 'Cultura e Futuro', realizada no passado dia 19 de Junho no Teatro São Luiz, reafirmou aquelas que consideramos serem ideias elementares para compreender o lugar da criação artística e da Cultura nas sociedades democráticas contemporâneas. Este documento de síntese pretende resumir as principais ideias expostas na sessão e apresentar um plano de trabalho e actividades que lhe dêem consequência.

Truísmos e falácias
Todos os intervenientes se preocuparam em desconstruir e rebater um conjunto de ideias hoje hegemónicas que, apesar de toda a sua desonestidade e fragilidade argumentativa, constituem a base de uma doutrina diametralmente oposta a qualquer ideia de serviço público de cultura. Torna-se por isso obrigatório nesta síntese atacar o problema pela raiz.
- A condição do artista "Os artistas não são parasitas, são construtores de desenvolvimento nacional com um potencial imenso por explorar", declarou Rui Vieira Nery, confrontando o discurso de redução do artista a uma figura socialmente indesejável, dependente do Estado e não produtivo. E acrescentou que a "ideia de que a criação artística é algo que se materializa [a partir] da pura vontade do artista é uma mentira que se instalou e que importa desmistificar". O governo incorre numa definição do trabalho artístico como algo de não profissional, à margem das actividades economicamente 'verdadeiras' e 'úteis'. Como bem realçou o musicólogo, "não é suposto um artista ter de passar fome para fazer arte. Génios sempre houve", mas não é assim que se constrói e mantém uma rede de criação artística [estruturada e com pólos] de excelência. Por outro lado, "a liberdade de criação não equivale ao deserto institucional". A ideia de que o Estado não se pode intrometer nas escolhas estéticas e programáticas dos criadores, uma ideia certa e defendida por todos, não tem qualquer relação nem justifica a actual estratégia de desresponsabilização governativa perante a rede pública de equipamentos culturais e perante os apoios à criação. Nas palavras de Catarina Martins, "ao Estado não cabe dizer o que é a cultura de um povo (...) mas cabe assegurar as condições de fruição e criação cultural."
-A dimensão económica Numa perspectiva económica, "esta estratégia entra em total contra-senso", considerou ainda Vieira Nery. Invocar a crise como pretexto para estrangular o investimento na Cultura é anular qualquer hipótese de sair da crise mas, sobretudo, o investimento na Cultura é, em termos macro-orçamentais, irrelevante. Qualquer corte na Cultura não adianta absolutamente nada para uma redução do défice orçamental ou da dívida pública. A insistência na frase 'não há dinheiro' não passa, por isso, de um pretexto para impor aquilo que é a convicção ideológica do actual governo: a cultura é um desperdício. António Pinto Ribeiro reforça o argumento: "a escolha não está entre investir na cultura ou aumentar o subsídio de desemprego (...) A escolha está, em primeiro lugar, em advogar por uma outra economia à escala europeia com consequências nacionais." João Canijo defendeu, por seu lado, que não há qualquer possibilidade de sustentar uma indústria de criação, mesmo com o intuito mais comercial, sem uma estrutura e políticas públicas que garantam economias de escala sustentáveis. Em Portugal, uma produção cinematográfica, para atingir os seus objectivos comerciais e ser independente de financiamento público, exigiria um mínimo de 800 mil espectadores nas salas de cinema, algo que, diz, "nunca aconteceu nem acontecerá".
É de política que falamos
A análise destes pontos deixa por isso claro que a actual situação de estado de excepção vivida pelo sector é uma escolha política, deliberada e consciente. Segundo as palavras de António Pinto Ribeiro, "a decisão da desvalorização da actividade artística não é financeira, ela é política e ideológica e é da responsabilidade do Senhor Primeiro Ministro." A condição de menoridade comparativa a que o sector da Cultura sempre se sujeitou politicamente é talvez uma das razões que permitem hoje a total ausência de responsabilização por parte da tutela. A estratégia não passa por medidas activas para o desmembramento do sector, mas sim pela recusa em qualquer comprometimento e acção. Nas palavras de Catarina Martins, "com um ano de Governo PSD/CDS tudo na cultura corre mal: a Rede Portuguesa de Museus está parada e os museus e monumentos sem pessoal, as bibliotecas estão sem orçamento para aquisições e mesmo sem bibliotecários, os teatros e equipamentos municipais de cultura em risco de fechar portas, estrangulados pela legislação sobre as empresas municipais e pela Lei dos Compromissos. O Alto Douro Vinhateiro está em vias de perder a classificação como Património da Humanidade. Portugal não teve representação oficial em Cannes ou Berlim. Na criação artística, este Governo não conseguiu cumprir uma única lei nem abrir um único concurso. Para cinema, teatro, dança, música, artes plásticas, o Governo fez de 2012 um ano zero."
-um problema de falta de futuro
O problema da empregabilidade das novas gerações foi realçado por António Capelo como a maior ameaça das novas gerações de profissionais da Cultura. Segundo o próprio, "ando a formar profissionais que não sei exactamente o que irão fazer no seu futuro." A indefinição da política cultural não permite por isso qualquer estruturação artística, nomeadamente da nova geração, obrigada a submeter-se a condições de emprego impossíveis de conciliar com um caminho profissional nas artes. Uma "alteração de paradigma radical", nas palavras de Luís Cunha, representante do CENA. Desenvolve-se assim um trabalho artístico na sua maioria sem qualquer tipo de apoio ou mesmo suporte público. O ator considera por isso que a atitude do "logo se verá" com que a SEC responde quando questionada sobre os concursos públicos de apoio à criação é, neste momento, "uma estratégia deliberada de desestruturar o sector". José Luís Ferreira afirmou por seu lado a necessidade imperiosa de " previsibilidade das relações do Estado com os agentes independentes", uma referência ao desrespeito sistemático da tutela pelos contratos estabelecidos com os criadores e teatros do país, que não encontra exemplo em nenhum dos outros sectores em que o Estado tem contratos de serviço público com parceiros privados.
-um problema de escala
A infra-estrutura de serviços de cultura no Portugal democrático foi sendo construída de forma frágil, com estratégias antagónicas e governos poucos esclarecidos. A rede de bibliotecas é hoje um pilar de democratização, de acesso ao conhecimento e impulso à criatividade. A rede de teatros, largamente desaproveitada e sem políticas coerentes de programação, não deixou de ser um elemento fulcral no acesso das populações à diversidade artística. A expansão do ensino artístico, que ainda não cobre todo o território, alargou o número de alunos e públicos de cultura. A rede de museus, embora manca por falta de investimento e políticas progressistas, é uma instituição central no aparelho dos serviços públicos. É pouco o que existe, mas é alguma coisa. Subsiste no entanto um problema estratégico de gestão transversal de toda a infra-estrutura, um problema cuja solução exige uma política coerente e, segundo Inês de Medeiros, uma “perspectiva geográfica do território” que responda a um problema de escassa regulamentação e excessiva "pessoalização" na gestão dos equipamentos públicos. Por outro lado, José Luís Ferreira sublinhou o cruzamento de desinvestimentos e cortes a vários níveis que começou já a paralizar um sector por natureza complexo e inter-dependente, que obriga a uma resposta coordenada e coerente. Raquel Henriques da Silva realçou a ignorância e autoritarismo da tutela para com os museus e património, revelado pela recusa do governo em reunir e ouvir o Conselho Nacional de Cultura desde que assumiu funções e a "total continuidade de más políticas dos últimos governos" que fez recuar a política de gestão do património e dos museus para um paradigma anterior ao 25 de Abril, uma referência à entrega dos museus à gestão das Direcções Regionais de Cultura, estruturas que considera “sem capacidade técnica” e que não corresponde a qualquer descentralização verdadeira já que estão directamente dependentes do Estado central.
-uma política cultural de emergência
António Pinto Ribeiro considera ser "imperioso que um secretário de estado seja substituído por um Ministério da Cultura que devolva a dignidade ao universo cultural. Que o Ministério da Cultura tenha um gabinete capacitado tecnicamente e com o mínimo de meios para a execução de uma política cultural de emergência para os próximo três anos». Considerou ainda crer «poder afirmar que muitos dos profissionais do sector cultural se comprometem a estudar meios e modelos que viabilizem novos mecanismos de financiamento aos sectores artísticos que, pela sua natureza minoritária ou pela sua vocação internacional, exijam meios que só o Estado pode considerar." -a televisão pública, a lei do cinema e a diversidade audiovisual A defesa da televisão pública, entendida como local por excelência de intersecção de produção e acesso à pluralidade estética audiovisual, foi o ponto de confluência de Nuno Artur Silva e Inês de Medeiros. Segundo a própria ainda ninguém conseguiu explicar "por quê e para quê" privatizar a RTP. Nuno Artur Silva adianta que "não se provou qualquer vantagem financeira nesta operação" e que o assunto se tornou "uma obstinação pessoal do ministro Miguel Relvas que não foi explicada." Deixou por isso três propostas abrangentes a todo o conceito de televisão pública: 1-É essencial que a RTP seja um conjunto de canais que, num mundo contemporâneo onde os conteúdos são vistos cada vez mais separadamente quando e como quisermos, permitam o acesso diferenciado à pluralidade de conteúdos. Hoje, montar um canal de televisão é uma operação relativamente barata, logo a RTP deve ter a liberdade de montar vários canais pois não há razões económicas que o impeçam, pelo contrário. 2-A Televisão Digital Terrestre possibilita que a televisão chegue às pessoas com oito canais de televisão abertos. Neste momento existem apenas quatro. Está-se a privar às pessoas o acesso a aquilo que é público. Todos os canais da RTP devem por isso ficar disponíveis de forma grátis na TDT. Não faz sentido que os portugueses paguem duas vezes por um canal público da RTP, primeiro através dos impostos, depois pela assinatura de serviço por cabo (através do qual se tem acesso a RTP memória). A RTP deve ser constituída por: um canal generalista; um canal alternativo; um canal memória (entendido como algo que faça o diálogo da memória com o presente); e um canal infanto-juvenil para as novas gerações terem acesso padrão a produção portuguesa dedicada; Isto libertaria os canais privados para valorizar a sua presença no serviço de televisão por cabo. 3-É crucial que a nova lei do cinema seja aprovada; é decisivo que haja dinheiro para fazer filmes com liberdade e é decisivo que se invista na televisão e não só no cinema; ou seja, é obviamente importante que se mantenha o apoio à produção de cinema português mas o que não faz sentido é deixar que se reduza a televisão portuguesa a um padrão de telenovelas latino-americanas por muito importante que sejam para manter uma indústria e postos de trabalho.

Proposta de Grupos de Trabalho
Os promotores da iniciativa 'Cultura e Futuro' consideram por isso prioritários e submetem à consideração de todos a constituição de três grupos de trabalho que, não sendo exaustivos a todos os problemas do sector, representam os assuntos onde mais incisivamente se pode e devem afirmar posições concretas que obriguem a respostas claras por parte da tutela.
- Governo e autarquias: co-responsáveis no desempenho de políticas culturais
A articulação dos investimentos entre o Estado central e o nível municipal em Cultura é uma condição base para qualquer recuperação do dinamismo cultural nacional. As redes de cine-teatros e outros equipamentos têm que conhecer finalmente uma co-responsabilização que viabilize o seu funcionamento e assegure regras de gestão. A lei dos compromissos está a implicar uma redução drástica de todo o investimento local. As regras a que estarão sujeitas num futuro próximo as Empresas Municipais implicará o encerramento de virtualmente todas as que têm a seu cargo a gestão de equipamentos culturais, sem que se vislumbre uma alternativa que não seja o regresso a formas arcaicas de administração. Torna-se por isso necessária uma reflexão aprofundada e geograficamente diversificada que permita uma resposta coerente.
-financiamentos para a cultura: orçamentos públicos, mecenato, fundos europeus
A economia da criação artística e dos processos culturais implica um financiamento importante cujos limiares mínimos estão longe de ser assegurados em Portugal. O Orçamento de Estado para a cultura reduz-se substancialmente de ano para ano. As dotações municipais estão em contracção violenta. As verbas do QREN foram investidas sobretudo no financiamento daquilo que deviam ser operações correntes, como as programações em rede, ou em grandes acontecimentos cujo impacto estratégico e de longo prazo não parece acautelado. A Lei do Mecenato tende a privilegiar o Estado e necessita de uma reforma profunda. O já anunciado programa Creative Europe, o quadro europeu de fundos para a cultura entre 2015-2022, entrou este ano em fase de preparação. Num contexto de crise é da maior relevância uma atitude pró-activa por parte da tutela que congregue os agentes culturais em candidaturas bem estruturadas a este novo quadro de apoio. A total renúncia do governo actual em agir nesse sentido explica-se pelas necessárias contrapartidas nacionais que implicam investimento público. O sector cultural é no entanto um dos poucos sectores onde o retorno fiscal de investimento público ultrapassa largamente o investimento realizado. Importa por isso realizar e publicar um estudo sobre o processo económico do investimento público na cultura aplicado ao caso português e fundamentar a exigência de políticas activas nos quadros local, regional, nacional e europeu para a cultura.
- cadastro da crise
Não existe neste momento qualquer registo estatístico dos efeitos da crise sobre os agentes culturais em toda a sua diversidade. Dos museus às bibliotecas, dos teatros nacionais aos teatros municipais, dos programadores aos criadores, nenhuns dados permitem conhecer com um mínimo de precisão as consequências da crise sobre o sector. Sabemos no entanto que há um refluxo generalizado de todas as estruturas, com despedimentos e precarização, empréstimos e endividamento sem solução, programas cancelados e fundos europeus desaproveitados por incumprimento da tutela. Torna-se por isso necessário e da maior relevância política para a defesa do sector construir um quadro mínimo do estado da Cultura no país. Propõe-se construir um registo voluntário da actividade do sector que reúna os seguintes dados elementares relativos ao biénio 2011/2012: número de actividades propostas e efectivamente realizadas; variação do número de colaboradores da estrutura (novas contratações; despedimentos ou passagem de contratos estáveis a colaborações pontuais e vice-versa); variação do financiamento disponível (público ou privado); número de encomendas (previstas, contratualizadas e/ou canceladas).

sábado, 23 de junho de 2012

texto da intervenção de Catarina Martins

Quando tudo corre mal temos de reconhecer que não é um acidente. É um propósito. Com um ano de Governo PSD/CDS tudo na cultura corre mal: a Rede Portuguesa de Museus está parada e os museus e monumentos sem pessoal, bibliotecas sem orçamento para aquisições mesmo sem bibliotecários, os teatros e equipamentos municipais de cultura em risco de fechar portas, estrangulados pela legislação sobre as empresas municipais e pela Lei dos Compromissos. O Alto Douro Vinhateiro em vias de perder a classificação como Património da Humanidade. Portugal não teve representação oficial em Cannes ou Berlim. Na criação artística este Governo não conseguiu cumprir uma única lei nem abrir um único concurso. Para cinema, teatro, dança, música, artes plásticas o Governo fez de 2012 um ano zero. Sobre estatuto profissional das artes e proteção social, embora esteja no seu programa, nada fez e a situação deteriora-se com desemprego e subemprego galopantes. Se tiramos os olhos do setor profissional da cultura e olharmos para o trabalho voluntário e amador, das coletividades e associações, o panorama não é melhor. Com a subida da taxa do IVA da eletricidade, as taxas da IGAC e os cortes nos apoios autárquicos, é quase impossível manter mínimos de atividade. Olhamos para a televisão, a única janela de tantos e tantas, e vemos a mais pobre Televisão Digital Terrestre da Europa. E na articulação com a educação, a promessa tantas vezes repetida, as notícias são as piores: acabou a Educação Visual e Tecnológica nas escolas, as comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo deixam de ter aulas de português e o ensino artístico está a ser forçado a aumentar o número de alunos por turma e a uniformizar-se a um ponto que a arte fica à porta da escola. Muitos destes problemas vêm de trás. Muitos são novos. Em todos os casos, a mesma inação. A prometida transversalidade de um Secretário de Estado da Cultura revela-se afinal uma transversal nulidade. Não por acaso, é no Porto, com um executivo camarário PSD/CDS, que a ação cultural mais conhecida da autarquia é o entaipamento: Rui Rio fechou 3 vezes uma escola e 2 vezes uma biblioteca, sem construir qualquer alternativa. Não é um acidente. É um propósito. E parte de duas premissas e duas omissões. As premissas são que a arte pode viver do mercado e que a cultura, a servir para alguma coisa, será para o turismo cultural. Sobre a arte e o mercado, cito a frase de um amigo, Jorge Palinhos, que diz tudo: “a criação artística só por si é a esperança, a criação artística submetida às leis do mercado são bibelots produzidos em série.” O Governo que não percebe a diferença entre arte e indústrias criativas, ou ciência e tecnologia, percebe muito pouco do que quer que seja. E acaba a matar as galinhas dos ovos de ouro: sem setor nuclear da cultura – arte, património, investigação – não há indústrias criativas ou quaisquer outras. Não há também com certeza turismo cultural, que alimenta boa parte do PIB europeu e português. Sim, a cultura alimenta o turismo, mas a cultura não é um bibelot num expositor. Chegamos pois às duas omissões deste governo: que a cultura é cidadania e que é viva. O acesso à cultura, aquele direito que está na nossa constituição, não é um conceito vazio. É a capacidade que cada um e cada uma têm de ter acesso à criação artística e ao património cultural, como espetador ativo e como criador informado. E é uma capacidade que não é para uma ou duas gerações, ou para um ou outro local do país, para quem pode pagar ou dar-se ao luxo de. É um acesso universal, de todas as gerações, de todos os locais, de toda a gente. A primeira consequência da falta de políticas públicas para o acesso à cultura é o cavar das desigualdades; territoriais, geracionais e, muito especialmente, entre quem paga o acesso ao conhecimento e quem não pode pagar. E cava também o fosso entre povos; entre os que são capazes de construir o seu futuro e os povos colonizados. É através da arte e da cultura que conhecemos o mundo em que vivemos e através delas que o desenhamos. Um povo que não conhece as suas histórias e não as constrói e um povo sem futuro. O único estudo sobre a participação cultural em Portugal, feito pela Comissão Europeia em 2006, diz-nos que 2/3 da população portuguesa não tem acesso à cultura. Os números do INE sobre bilhetes e entradas mostram que hoje não estamos melhor. Muito pelo contrário; um estudo sobre cinema recentemente divulgado dá conta da perda de espectadores, provocada pela crise. 2/3 da população sem acesso à cultura. Um gigantesco atraso estrutural. Nenhuma crise será ultrapassada enquanto a Cultura não for uma prioridade nas políticas públicas. Ao Estado não cabe dizer o que é a cultura de um povo. Um povo nunca é um, são muitos. E é com todo o mundo. Ao Estado cabe assegurar as condições de fruição e criação cultural. Não é nenhuma novidade, nem nada de muito estranho. No São Luiz reuniram-se pessoas com experiências muito diversas, de diferentes gerações e de diferentes áreas da cultura e da política, para levantar questões e construir proposta. Sei que teremos certamente ideias diversas sobre vários assuntos. Mas julgo que nos une a afirmação comum de princípio e que é essencial: cabe ao Estado desenvolver políticas públicas para a Cultura. Com estratégia e orçamento. A aparente omissão deste Governo é ação; ação destrutiva. Os que se reuniram em torno da afirmação de “cultura e futuro” constroem.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

'2012, o ano zero da Cultura'

Imagem de Tatiana Macedo, para ser partilhada por todos, de forma livre. Alterem a imagem, mudem-lhe a cor. O que interessa é partilhar. A sua carga simbólica ganha força e ajuda à mobilização do sector.

texto da intervenção de António Pinto Ribeiro

Amigas e amigos Vivemos um enorme mal estar neste país. O desemprego assola por todo o país, vivemos uma crise política, vivemos num estado de tristeza e de desorientação social. Os sectores culturais no qual se incluem muitos dos protagonistas do universo artístico, científico, intelectual sentem duplamente este mal-estar. Sentem-no por todos aqueles que estão também eles no desemprego, por todos os que ficaram com o seu processo de criação e de produção interrompido, por todos os que ficaram sem meios nem apoios para sobreviverem com a dignidade que é merecida a todo e qualquer cidadão. E sentem-no também porque é suposto que esta comunidade do sector cultural alargado tenha uma consciência crítica do que se passa com os seus vizinhos, os seus concidadãos, nos seus territórios de trabalho e de vida bem como nos territórios dos seus amigos, familiares, conhecidos. Sentem-no e quase sempre calados ou inactivos, com um misto de dor, de zanga, de impotência mas também, creio, de revolta. Depois de ao longo de trinta anos se ter construído um sector cultural que praticamente não existia, se terem construído infraestruturas algumas âncoras culturais das regiões, embora outras nem por isso, mas que aí estão para serem utilizadas e potencializadas, se ter criado sempre com o mínimo dos recursos uma história artística e cultural, um património de novos conhecimentos e um conjunto vastíssimo de obras de culto, eis que uma falta de preparação para os cargos governativos associada a uma agenda neo-liberal que privilegia a massificação, o mau gosto e se opõe diariamente a toda a produção cultural que seja crítica começou a destruir todo este capital tanto real como simbólico. Responsabilizar o sector cultural por gastos despropositados não só é demagógico como é irracional. Na verdade, a escolha não está entre investir na cultura ou aumentar o subsídio de desemprego ou o salário mínimo ou encerrar hospitais. A escolha está, em primeiro lugar, em advogar por uma outra economia à escala europeia com consequências nacionais. Por consequência, a opção não está entre investir nestes sectores ou insistir na compra de submarinos, abrir excepções permanentes nos salários de gestores das empresas onde o Estado participa, ou, de um modo ainda mais correcto, não fazer participar o sector cultural numa economia que não se regule pelo etnocentrismo das finanças e por um autoritarismo do Estado executado a partir de instrumentos financeiros. Porque a decisão da desvalorização da actividade artística não é financeira, ela é política e é da responsabilidade ideológica do Senhor Primeiro Ministro. Esta política neo-liberal aplicada à dimensão cultural e associada à grave impreparação cultural de quem a tem posto em prática tem contribuído para o isolamento do país a cada dia que passa – um país mais ausente nas organizações culturais e artísticas internacionais, abandonando os territórios de disputa de influência desse “soft power” que são alguns sectores culturais, abandonando a internacionalização que uma política cultural de intervenção internacional abraçaria, isolando-nos, enfim, numa periferia pequena. Apesar dos esforços e consequentes ganhos que muitos artistas, obras de culto ou investigadores têm alcançado nos territórios internacionais de intervenção, é por decisão do Governos que nós estamos, todos os dias, um pouco mais longe dos mundos a que importa pertencer. Neste momento é imperioso que um secretário de estado seja substituído por um Ministério da Cultura que devolva a dignidade ao universo cultural. Que o Ministério da Cultura tenha um gabinete capacitado tecnicamente e com o mínimo de meios para a execução mínima de uma política cultural de emergência para os próximo três anos crendo poder afirmar que muitos dos profissionais do sector cultural se comprometem a estudar meios e modelos que viabilizem novos mecanismos de financiamento aos sectores artísticos que ou pela sua natureza minoritária ou pela sua vocação internacional exijam meios que só o Estado pode considerar. O mercado não resolve a maioria das situações relativas à criação e à difusão cultural bem como à maioria de formas de conhecimento. Alguma da sua eficácia depende das áreas artísticas e da natureza do projecto. Hoje o senhor Ministro dos negócios Estrangeiros congratulava-se com o sucesso de uma artista portuguesa que expõe em Versalhes. Era importante que o Senhor Ministro soubesse que a realização desta exposição pouco deve aos Mercados. Deve-o ao reconhecimento francês da artista e às Instituições e Fundações portuguesas que só elas facilitaram a realização da exposição. Pensar a Cultura e o Futuro é em primeiro lugar reclamar pelo reconhecimento do sector cultural e da sua dignidade e profissionalização que o governo lhe merece e é depois disto pensar novas formas de sustentabilidade do sector através de novas formas de organização do próprio Ministério da Cultura e das suas Instituições, é pensar na produção artística em modelos de comparticipação mais activa de múltiplos intervenientes, é pensar em como comunicar melhor o que pode ser comunicado para que mais cidadãos se tornem espectadores, ouvintes, leitores, espectadores e assim constribuam para a sustentabilidade do acesso às diversas formas de expressões culturais para os cidadãos. É um compromisso a levar a cabo por duas partes.

terça-feira, 12 de junho de 2012

Carta - 'Cultura e Futuro'

     O património cultural e o acesso à criação artística contemporânea constituem valores de civilização inerentes às democracias modernas. Os direitos à identidade e à diversidade cultural, à participação na vida cultural, à livre criação e fruição artísticas, à cooperação cultural internacional, são direitos culturais reconhecidos pela UNESCO, que investe os Estados na responsabilidade de construir políticas públicas que assegurem o seu pleno exercício. No Portugal democrático, a efetivação dos direitos culturais constitui uma tarefa fundamental do Estado, a par dos direitos económicos e sociais e da promoção do bem-estar, da qualidade de vida da população e da igualdade real entre portugueses, conforme estipulado na Constituição da República.
Portugal está hoje equipado de museus, bibliotecas, arquivos, teatros, cineteatros, orquestras, património histórico, material e imaterial, bem como de uma rede de artistas, criadores, programadores, técnicos e produtores, complexa e de reconhecida excelência nacional e internacional. No entanto, todo este edifício apresenta enormes fragilidades. Os investimentos em infraestruturas e em formação não foram acompanhados por uma estruturação mínima da partilha de encargos e responsabilidades, da definição de cartas estratégicas e de regras de gestão independentes dos poderes imediatos.
Neste momento, como resultado de uma governação abertamente hostil à ideia de serviços públicos de cultura e que usa a crise como alibi, assistimos a uma rápida e progressiva desprofissionalização no setor cultural, ao fechamento das agendas culturais e à desagregação da identidade social dos equipamentos públicos. O desinvestimento do Estado, nas diversas dimensões das políticas públicas para a cultura, nega, efetivamente, o acesso dos cidadãos à cultura e desbarata o investimento feito nesta área no Portugal democrático.
O acesso à cultura, na dupla dimensão da criação e fruição, é essencial ao desenvolvimento. O Estado não pode iludir as suas responsabilidades na promoção do acesso ao património cultural, ao conhecimento, à qualificação, à participação cidadã. E não pode também desresponsabilizar-se pelo acesso à criação artística, que constrói o património cultural do futuro e é o instrumento de construção das narrativas próprias, das identidades múltiplas da nossa vida coletiva. Um povo sem acesso ao património cultural e à criação artística é um povo colonizado, sem os instrumentos básicos para se conhecer e, portanto, formular a sua singularidade.
Ao contrário daquilo que enuncia o discurso corrente, é precisamente nos momentos de crise, como o que vivemos, que as políticas públicas para a Cultura ganham renovada atualidade. A Cultura é um instrumento fundamental de construção de uma qualquer ideia de futuro, quer do ponto de vista simbólico, enquanto conjunto de valores e práticas que têm como referência a identidade e a diversidade cultural dos povos e que compatibiliza modernização e desenvolvimento humano, quer do ponto de vista económico. A produção cultural dinamiza uma série de cadeias produtivas que lhe permitem multiplicar o investimento público como nenhum outro setor. E é ainda um elemento estratégico da economia do conhecimento.
O discurso económico, instituído e incentivado pela tutela, tem procurado submeter a cultura e a criação artística a conceitos redutores que tendem para uma hegemonização da oferta concentrada em grandes produtores e distribuidores de conteúdos. É sistematicamente esquecido que a economia do conhecimento, baseada na criatividade, é bem-sucedida apenas quando construída sobre uma forte e complexa rede de infraestruturas e agentes culturais que só políticas públicas podem garantir. O paradigma norte-europeu, tido por exemplo de sucesso, acontece graças a um adquirido fundamental e politicamente consensual de investimento público na cultura e na criação contemporânea, que permitiu às indústrias culturais e criativas uma aposta arriscada na inovação, com fracassos e sucessos.
Torna-se pois imperativo que a densa e complexa rede pública dos serviços de cultura se qualifique no imediato e se torne operativa, de modo a cumprir o espírito da Constituição onde o Estado Português se obriga, em colaboração com todos os agentes culturais, a incentivar e a assegurar o acesso de todos os cidadãos aos meios e instrumentos de ação cultural, bem como a corrigir as assimetrias existentes no País e a articular a política cultural e as demais políticas setoriais. É necessário um novo paradigma de gestão desta rede complexa de equipamentos e agentes culturais, cuja concretização exige responsabilidade governativa real e compromisso orçamental, onde a justiça da partilha e a ética da responsabilidade presidam às tomadas de decisão. O património cultural e a criação artística contemporânea constituem parte do melhor que existe na representação externa da imagem de Portugal. Urge viabilizar a internacionalização desta materialidade e deste imaginário, apoiar a produção contemporânea e, sobretudo, viabilizar aos cidadãos portugueses o usufruto do seu capital simbólico e cultural. 
Os subscritores deste documento afirmam a necessidade de um compromisso alargado em torno de uma ideia estratégica de cultura e de relação com a criação artística, que agregue as forças políticas, mas, sobretudo, os cidadãos enquanto primeiros destinatários de toda a atividade artística e cultural.
Este compromisso não pode deixar de incluir uma dimensão orçamental – negligenciável no cumprimento das metas de redução do défice, dada a dimensão quase nula que assume no presente – que deverá passar pela inclusão de programas específicos para a cultura no plano de investimentos que resultará da reprogramação do QREN.
Deverá, no entanto, transcender essa dimensão orçamental, conferindo prioridade à articulação de responsabilidades entre o Estado central e as Autarquias, à enunciação de prioridades no restabelecimento de um tecido criativo com um mínimo de escala e de capacidade de desenvolvimento de projetos, à definição clara de regras de gestão independente da rede pública de serviços de cultura, ancoradas numa estabilidade que permita o desenvolvimento de planos de ação plurianuais e, finalmente, à normalização das relações do Estado com os agentes independentes.